Rio e Manaus – “Olho para as casas ao lado, de alvenaria, e sonho em ter um lar assim para meus filhos”, diz Marli Medeiros, de 36 anos. Desempregada, ela vive em Manaus, no Amazonas, com o marido e os três filhos. Divide com eles a pequena casa de paredes de madeira, tomadas por cupins. A moradia da família é um dos quase sete milhões de domicílios brasileiros, ou 12,1% do total, que se enquadram em uma das quatro categorias do déficit habitacional. Em 2010, dos 5.565 municípios do país, todos tinham algum tipo de déficit. Desses, 28,5% – ou 1.435 cidades – estavam acima da média nacional.
Os dados são da pesquisa Déficit Habitacional Municipal no Brasil 2010, da Fundação João Pinheiro, em parceria com o Ministério das Cidades, a partir dos números do Censo 2010. O estudo, que pela primeira vez analisou todas as cidades do país, apontou déficit de 6,940 milhões de unidades, sendo 85% na área urbana. Para os pesquisadores, o conceito de déficit não significa falta de casas, mas sim más condições, o que inclui desde moradias precárias até aluguéis altos demais. E uma política pública única não resolverá a questão, já que existem muitas diferenças entre regiões, estados, áreas metropolitanas e até entre as não metropolitanas.
No Norte do país, no Maranhão e no Piauí, por exemplo, os domicílios precários são a maioria. Nos demais estados do Nordeste e nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, a questão principal é o ônus excessivo com o aluguel (ver box ao lado com os quatro componentes do cálculo do déficit). Além disso, o estudo concluiu que 70% do déficit nacional estão concentrados no Nordeste e no Sudeste. Proporcionalmente, Manaus é a capital com maior déficit (23% dos domicílios enquadrados em uma das categorias de déficit habitacional). Entre os estados, o problema é maior no Maranhão (27% das habitações).
– Não funciona ter política única para o país inteiro. E a equação não é simples. Não basta dizer: o déficit é esse, então vamos construir tantas casas. A população migra, as pessoas casam. O sistema é dinâmico. Um programa como o Minha Casa Minha Vida pode ajudar qualquer cidade, mas vai ter impacto diferente a partir do tamanho do município. Em São Paulo, construir mil casas não faz nem cosquinha. Em Búzios, no Rio, resolve. Em Belo Horizonte, ajuda um pouquinho – diz Adriana Ribeiro, coordenadora da pesquisa, lembrando do principal programa de habitação do governo federal.
Minha Casa: 1,5 milhão de unidades entregues
Lançado pelo ex-presidente Lula em seu segundo mandato, o Minha Casa Minha Vida entregou, até dezembro de 2013, 1.547.473 unidades. São Paulo é o estado que mais recebeu casas, e é também, segundo a pesquisa da fundação, o estado que tem maior déficit absoluto em todo o país: 474 mil unidades. Na faixa 1, para aqueles que têm renda de até R.600, o Minha Casa entregou 459.648 casas.
Secretária nacional de Habitação, Inês Magalhães destaca a importância do Minha Casa, mas reconhece que o programa não tem influência direta em componentes como ônus com aluguel e coabitação. O governo aposta ainda no PAC Urbanização para conter o déficit. Áreas como a favela da Rocinha e o Complexo Alemão, no Rio, e Paraisópolis, em São Paulo, passaram por intervenções.
– Déficit é radiografia do retrovisor. O que era em 2010 pode ser maior ou menor hoje. Somos um país jovem e, ainda que a fecundidade esteja caindo, a formação de domicílios é crescente no Brasil. Temos, então, que trabalhar o passivo e também atingir a demanda. O Minha Casa leva em consideração a capacidade de subsidiar a moradia e a necessidade – explica Inês, lembrando que o Brasil demanda mais ou menos um milhão de domicílios a cada ano: – Isso não significa que o governo tenha que fazer todos. E vale lembrar que habitação é transferência de patrimônio, então estabilidade inflacionária e distribuição de renda contribuem.
De acordo com ela, os desafios hoje estão ligados aos municípios, mas o ministério precisa aprimorar parcerias:
– O setor público municipal tem que ter arcabouço legal para habitação de interesse social. Tem que ter plano diretor, código de obra que seja adequado à realidade. O ministério tem o desafio de criar parcerias que facilitem o trabalho das prefeituras. Sabendo, claro, que nenhum país estabiliza em curto prazo e que é importante ter estabilidade de investimentos do setor privado. Habitação é uma equação, e cada variável tem maior ou menor peso.
Pesquisadora do Laboratório de Geografia Política e Planejamento Territorial e Ambiental da USP, Melissa Giacometti de Godoy lembra que déficit é um problema mundial e que mesmo países mais desenvolvidos podem enfrentar crises:
– Não é porque um país é mais desenvolvido que a questão está melhor resolvida. A crise dos EUA, em 2008, mostra a complexidade da questão. Metrópoles sofrem o alto impacto da dinâmica do mercado imobiliário. O que acontece na Zona Sul do Rio, com imóveis tendo aluguel alto, acontece na Região Metropolitana de Londres.
A metodologia de cálculo do déficit varia entre países, o que impede comparações. Pelos critérios locais, na Argentina, em 2010, mais de 20% das famílias viviam em habitações precárias. Na França, é estimado entre 800 mil e um milhão de moradias, de um total de 24 milhões. E um estudo do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, em 2000, mostrava, na América Latina, déficit de 51 milhões de moradias.
– O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que não analisa todas as cidades, aponta tendência de queda. Mesmo tendo na História recente um esforço para avançar, estamos longe de um ponto de equilíbrio. As cidades crescem, novas famílias se formam e quanto mais se dá crédito habitacional mais a demanda aumenta. O Brasil tem um desafio muito grande por conta do tamanho e da população cada vez mais urbana – explica Melissa.
CÁLCULO TEM QUATRO COMPONENTES
Na pesquisa da Fundação João Pinheiro, quatro componentes somados formam o cálculo do déficit habitacional. São eles: domicílios precários, isto é, os improvisados (imóvel comercial, pontes, viadutos) e rústicos (palha e madeira aproveitada); coabitação familiar, quando há mais de uma família por domicílio; ônus excessivo com aluguel urbano, quando a família tem renda de até três salários mínimos e gasta 30% ou mais com aluguel; e ainda o adensamento excessivo de domicílios alugados, que se caracteriza quando há acima de três moradores por dormitório.
A inadequação de domicílios – falta de água, de banheiro, de saneamento – não faz parte do cálculo do déficit. Coordenadora da pesquisa, Adriana Ribeiro explica que “para os domicílios enquadrados em algum critério de déficit não se investiga a inadequação. Partimos do pressuposto de que, resolvendo o déficit, inadequações estarão sanadas”.
No estado do Rio, situação é mais grave em Búzios
Balneário famoso no Brasil e no exterior, Búzios é o município do Estado do Rio com maior déficit habitacional relativo – aquele que compara o déficit habitacional ao total de domicílios do local analisado. Por lá, segundo a pesquisa, o déficit era de 16,4% ou 1.474 unidades. A cidade está acima da média do estado, que é 9,8%.
– Vimos que o principal problema é o ônus excessivo com aluguel. Então, imaginamos que o déficit se dê porque muita gente é atraída para trabalhar e ao chegar encontra preços de aluguel elevados – diz Adriana Ribeiro, que coordenou o estudo.
Quando é visto o déficit absoluto, a cidade do Rio apresenta o maior número: 220.774 unidades. Em todo o estado, o déficit é de 515.067 domicílios.
Moradora da Saúde, Solange de Souza, de 57 anos, divide a casa alugada com a filha Stephanie, de 16. Auxiliar de limpeza, ela ganha R$ 800 por mês e gasta R$ 393 com aluguel.
– Com as obras (da Zona Portuária), o bairro está valorizando. Vamos supor que aumente, será que amanhã ou depois terei condições de pagar? O único medo que tenho é de não conseguir pagar meu aluguel. Não tenho nem medo de faltar um biscoito para comer – diz Solange, que já foi moradora de rua: – Queria mesmo era uma casa própria. Esse dinheiro (do aluguel), eu aproveitaria em outra coisa, poderia pagar um curso para a minha filha.
Prefeito do Rio, Eduardo Paes lembra que, desde a criação do Minha Casa Minha Vida, a cidade contratou mais de 66 mil unidades, sendo mais da metade na faixa 1, mas reconhece ter alguns desafios.
– Nossa meta até 2016 é ter 100 mil unidades, mas não é simples cumprir. Na Zona Oeste, tem uma área em que já não permito mais construções. E é difícil buscar terrenos em áreas já com infraestrutura. Compramos uma área em Jacarepaguá, vamos construir também na Zona Portuária – diz Paes.
O prefeito lembra ainda que o Rio conta com o programa Morar Carioca, que pretende urbanizar todas as favelas:
– Estamos fazendo com que favelas consolidadas possam virar um local com qualidade de vida, sendo reestruturadas e urbanizadas. Agora, quanto mais nobre a favela, mais gente vai para lá morar de aluguel. Por isso, fazemos agora um esforço para criar áreas habitacionais no Centro. Tem muita gente contra adensar a cidade, é difícil, mas recuperar uma área de 5 mil m², que estava abandonada, é importante e traz benefício também para o entorno.
Fonte: O Globo Online